Uma esquizocrônicapara Samuel Beckett Na forma do caos

Nuvens radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes! Terroristas líbios, uma colagem de Vicente Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar lençóis na sexta, Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB referindo-se aos "esfuzian- tes-anos-80" (?), cortes na seleção, leves paranóias, mas eu sei onde estou metido, gangues juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma dor—isso é que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos negros no Brahma, cartão-postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei e não dis­se, Giovanni guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta, talvez desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento & inexorável o come­ço do fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de "tiete-bem-pensante" (?), mas não pensem que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um poste, ma­drugada de sábado no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi, Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma im­portância, só porque sei onde estou metido, outra vítima de aids, pa­rem de me testar: sou legal, cara, pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu-te-amo? Patrícia em prantos ao telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame Satã, quem me seduz? Olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse, olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum com­preender nada de onde se está desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer de comprar gilete G-II, que falta faz Ana C., meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião, repetir fascinado me- tâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias desenfreadas, tudo o que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos solici­tando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto, ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde es­tou metido, uma carta que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca pro anjo da guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira, sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va não, meu caro: honestidade, epidemias, vírus, pestes, dengues, devia vender mais caro minh'alminha inestimável, Toninho amea­çado pelos skinheads, nenhuma solidariedade, azia na certa ama­nhã de manhã, saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém desconhecido, investigar preço de se­cretária eletrônica, ter certeza de que em algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre, querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jan­tar na tua casa, bota Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado, irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino, companheira, empurrado pela de­sordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega, let it be, let it be, baby, que la vie, em rose ou em black no duro — é sempre uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos—eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei muitíssimo bem onde estou metido.

O Estado de S. Paulo, 6/5/1986


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| Por Caio Fernando Abreu | 26.1.14 | 21:16.

Eliete chegou no meio do speed. No terceiro dia da paixão, virei tiete

Estou apaixonado.
Não se preocupem, não é por uma pessoa. Ou é, sim, por uma pessoa.
Mas só indiretamente. Estou apaixonado pelo trabalho dela, pela voz, pelo clima, pela delicadeza e pela Arte (assim mesmo, com maiúscula) dela. Deixo de mistério, entrego: Eliete Negreiros e seu último — segundo, ao que sei — LP, da Copacabana.
E isso que ando difícil, ando torturado. Não tenho tempo, cor­ro o dia todo, acho tudo e todos barulhentos, exaustivos. Movido por esse horrível sentimento de urgência paulistana que não me deixa olhar nada lentamente, sentir devagar. Sufocado, ando apressado. Nos segundos roubados desse estrangulador ganhar-a-vida, me alimento de jóias raras: João Gilberto, sempre, um pouco de Sade, Billie, Bassie, Nana Caymmi, Nara Leão, Schumann. Tudo o mais me parece atordoante. Ando em busca do silêncio que a cidade não dá. Da paz que a cidade não dá. Da suavidade zen que esta cidade não dá, nunca deu nem dará nunca. A ninguém.
Foi no meio do speed que chegou Eliete. Eu nunca tinha pres­tado atenção nela. Mal nos conhecemos, mais através de um lindo amigo em comum—Milton Hatoum, o Manaus. Mas tenho precon­ceitos. É feio, sei, mas tenho. Daí pensava: ai meu Deus, mais esta Arriguete, com aquelas letras concretistoides geladas & modernésimas... Nunca tive paciência para ouvir Eliete antes. Embora, nas poucas vezes em que nos cruzamos, ficasse agradecido e contagiado pela paz dela.
Comecei pela versão de La vie en rose. Deu um clack! na ca­beça, não sei explicar. Fui arriscando outras faixas, uma por uma, medo de estar enganado. Não estava. Primeiro veio uma letra lindíssima de Zé Miguel Wisnik, com música de Carlos Rennó: Domingo longo (ah, conheço tantos); veio um samba de Elton Medeiros e Eduardo Gudin, falando "às vezes se guarda o melhor caminho/ se oculta o desejo pra não sofrer".
Uns blues doloridos de Itamar Assumpção. O sax de Roberto Sion. No meio da pressa, como eu ia dizendo, a voz mansa, afinadíssima, de Eliete dizendo sossega, sossega, meu amigo, tudo é coisa de gente, tem um bonito in aparente por trás, tenta ver.
No terceiro dia da paixão, virei tiete e liguei pra ela. Queria dizer obrigado, menina, quando você canta, a vida para de girar tão rápido e até parece bonita. Ela foi paciente com minha inva­são. Desliguei agradecido, espantado com minha própria ousadia. Agradecer é difícil. E a gente precisa aprender, a gente precisa. Aprender a não ser só.
Eliete, new-bossa. Para que vocês compreendam: o primeiro LP que comprei na vida foi de Sylvinha Telles. Tinha doze anos. Aos trinta e sete, só João Gilberto me sereniza. Ou Astrud. Há um mês, só tiro para lavar uma camiseta escrita "Bossa-Nova", que o Pardal, lá da lojinha do mesmo nome, me deu. "Ah, bossa-nova, new-bossa, olha eu aqui sem viver" — chora minha rainha Rita Lee. A vida então se adoça. Gosto de mel, de flor, de azul. Não de avenida Paulista nem de Madame Satã. Preciso manter a ilusão de que tudo pode ser doce. Preciso acreditar que a vida pode ser como a voz de Eliete. E que em alguma esquina, um dia — por que não? — encontrarei um amor bonito esperando por mim.
Quando saio, agora, fico impaciente. Quero voltar pra casa, colocar logo o disco para que o mundo todo se reorganize em do­çura. Gostar de ouvir Eliete é cuidar de um certo jeito de olhar o mundo. Por trás do susto, perdão de olhos molhados, pegar na mão devagarinho e repetir de verdade, do fundo, sem o menor pudor, sem ânsia alguma:
—Gosto de você. Você existir me ajuda a viver.
Depois, acreditar que tudo vai dar certo. E deixar — como ela canta—que o amor dê o que falar.

O Estado de S. Paulo, 29/4/1986


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| Por Caio Fernando Abreu | 19.1.14 | 21:13.

Imagine-se cercado de estrelas. Ali do lado, ao alcance da mão

É fácil enlouquecer durante a semana de cinema brasileiro, em Gra­mado. Sem falar no choque cultural com a cidade europeizada, sem nordestinos nem mendigos; sem falar na estranha neblina que desce de repente do pico das serras, a qualquer hora do dia, para ir embora sem o menor aviso; sem falar no ar tão limpo e na luz tão clara que chegam a doer nos pulmões e nos olhos acostumados ao cinza urbano. Mesmo sem considerar isso tudo ajudando no processo de loucura— há as estrelas.
E estrelas, você sabe, não são de carne e osso. Pelo menos no meu coração de guri criado no meio dos campos da fronteira com a Argen­tina, vendo estrelas só no céu — o céu do Rio Grande é o mais belo do Brasil, sem bairrismos — e nas revistas. As estrelas das revistas mais intocáveis até do que as do céu, que numa determinada época do ve­rão costumavam desabar aos montes em direção ao horizonte. Fazía­mos pedidos. As outras, as da terra, não víamos nunca. No máximo, Vi­cente Celestino e—Jesus, como sou antigo!—Procópio Ferreira. Fiquei não só extasiado, mas, para usar o adjetivo exato, estarrecido também.
Agora, imagine-se você cercado de estrelas durante uma sema­na inteira. Ali do lado, ao alcance da mão. É pirante. Você sai do quarto e dá de cara com a moça do quarto ao lado. E a moça do quarto ao lado é nada menos que Nicole Puzzi. Você pega o elevador e uma lourinha simpática faz um comentário rápido sobre o tempo: é Débora Bloch. Aí você vai tomar um café, e o gatão ao lado pede o açúcar: é Nuno Leal Maia. No corredor, meio estonteado, você esbarra sem querer em Marieta Severo. Enquanto pede mil desculpas, alguém esbarra em você: é Arnaldo Jabor. Você resolve ir ao banheiro molhar os pulsos — e quem está fazendo xixi ali do lado, como se fosse a coisa mais normal do mundo? Chico Buarque de Hollanda. Você pensa, meu Deus, pre­ciso sair urgente deste hotel, dar uma volta na rua, ver gente comum, banal, mortal, normal.

Até conseguir chegar à rua, você já tropeçou em Cláudio Marzo, Bruna Lombardi, Fernanda Torres, Riccelli, Roberto Bonfim, Miriam Rios e — socorro, assim também é demais! — Tom Jobim. De cabeça baixa, para não ver mais ninguém, porque chega! você corre para o bar mais fuleiro da esquina. Um bar onde estrelas não entrariam. Mineral com gás, por piedade. O cara ao lado, um de bonezinho, acha a idéia boa e pede uma também. Você olha para a cara ao lado. Embaixo do bonezinho está Ney Latorraca. Você desiste da água, sai a mil pra rua. E choca-se com uma senhora alta, elegantési- ma: Ilka Soares. Logo a tia Ilka, de quem eu colecionava fotos recor­tadas de O Cruzeiro, Vida Doméstica e Cinelândia?
Não, eu não agüento. Não fui feito para essas alturas. Uma vez em que Caetano me sorriu na praia, baixei os olhos e passei batido com o ar mais remoto que consegui armar na cara. Tenho medo-pânico de estrelas. Do céu, da terra. Elas devem permanecer no espa­ço, nas telas, nos palcos. Não andar se misturando por aí, nos bares, nos balcões, nos elevadores, nos banheiros — feito fossem seres co­muns. Preciso — como o Molina, de O beijo da mulher-aranha — ter certeza de que as estrelas são todas como a Leni Lamaison, de Sônia Braga, fumando com gestos largos, cobertas por metros de tule ne­gro, longe do insensato mundo.
Caso contrário, digo ao povo que piro. Não vou admitir de jeito nenhum que as estrelas tenham um cotidiano assim pobrinho que nem o nosso. Como meu irmão Felipe, quando tinha uns dez anos, que me perguntou:
— Caio, a Brigitte Bardot também faz cocô? Até hoje, eu juro que não.

O Estado de S. Paulo, 15/4/1986


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| Por Caio Fernando Abreu | 3.10.13 | 16:24.

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência

Se a Nara Leão, naquele velho disco, também achava — por que não poderia eu também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie — por que não posso ter coisa semelhante em minha vida de retinas fatigadas? E confessá-lo de público — atente na expressão —, assim: meus amigos são um barato. Um baratão. Nos dois sentidos: o do insólito e o do inseto.
Meu amigo Pedro, por exemplo, é um barato no sentido mais tradicional da expressão. Ou não? Fico um pouco confuso, e pensan­do bem talvez ele seja mesmo uma curtição. O passatempo prefe­rido dele é, nos fins de semana, fazer tremendas vivências em Mauá. Fazer vivência vem a ser o quê? Ora, cara, tá por fora: qualquer coisa pode ser uma vivência: um chá, um baseado, uma caminhada. Im­portante é que seja em grupo. E que você vá fundo, entendeu? Com direito a nirvanas e iluminações.
Meu amigo Pedro é superfeliz. Detesta quem tem problemas: ele diz que é baixo-astral. Ele está sempre numa ótima. Detalhe: mora num apartamento de andar inteiro de frente para a praia, no Rio. Com os pais, claro — embora tenha trinta anos. Mas tudo bem: para gozar de inteira liberdade, ele pode usar uma coberturazinha absolutamente simples. Outro passatempo dele, embora adore pe­dir carona, é dirigir o Monza zerinho de manhã. Daqueles que você aperta botões e acontecem coisas tipo fontes luminosas, faróis de laser, show de mulatas etc. Mas ele, meu amigo Pedro, é singelo e franciscano: anda sempre de camisetinha zurrapa e sandália havaia­na. Tem certeza de que, um dia, vamos todos viver em paz — na Era de Aquário. Confirmou isso no último verão, passado na Bahia, com uma pá de gente de cabeça feita.
Já minha amiga Kate, um pouco mais moça, despreza meu amigo Pedro. Comenta: "Ele acha que Woodstock foi ontem. E ain­da nem desarrumou a mochila". Ele comenta sobre ela: "Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou". A verdade é que não conheço ninguém mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e o das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado de um lado, vezenquando uma peruca rosa de nái­lon. Naturalmente é performática. E faz cursos sen-sa-cio-nais: o último foi de vídeo-performance — um arraso. Minha amiga Kate acha tudo meio antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose Bom-Bom, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só...
Meu amigo Betinho é radicalmente o oposto. Faz a linha subir-com-esforço-na-vida. Quanto mais esforço, melhor. Tem visões futuristas com videocassetes, IBMs elétricas, secretárias eletrônicas louras de olhos azuis, guarda-roupas completos para as quatro estações comprados na Mr. Kitsch. Embora, no fundo, goste mesmo é de Calvin Klein. Ou — em momentos de profunda verdade interior — de um sólido Pierre Cardin. Naturalmente, ele veio de baixo. Muito baixo. Tem um problema sério: quando bebe, tem paixão por ouvir Alcione. E por tudo isso, se você for a um res­taurante com meu amigo Betinho, pode estar certo de que a conta jamais será dividida em partes iguais. Em alto e bom som, ele sem­pre dirá: "Mas eu não tomei cafezinho!"
Minha amiga Joana — ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante — há anos largou tudo, pegou uns panos vermelhos, botou um mala no pescoço, com aquele 3X4 de Rajneesh, e foi embora pra Floripa (leia-se Florianópolis). É conhecida por lá como Bodhira, que em sânscrito quer dizer flor de não me lembro o quê. Será — haja — ló- tus? Quando fui visitá-la, fizemos muita meditação caótica juntos. Supervivência, se pintar, experimente. É um barato.
Enfim, esses são só alguns. Tem mais, talvez para uma Parte II. Mas, como todo ficcionista, sempre procuro deixar muito claro que qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas — bem, você sabe. E eu adoro meus amigos. Simplesmente adoro.

O Estado de S. Paulo, 8/4/1986


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| Por Caio Fernando Abreu | 25.9.13 | 16:22.

Para
Ilone Madalena Dri Almeida,
 minha primeira leitora.


 “ No ginásio, em Santiago, tive a sorte de ter um professor de Português muito bom José Cavalcanti Jr. Certa vez ele realizou um concurso de romances, e este meu foi o vencedor. Foi em 1962, eu tinha 13 ou 14 anos. O sucesso foi enorme: as meninas faziam fila para ler (só havia uma cópia, escrita em caderno Avante com caneta Parker 51). É evidente que a história cheia de clichês, influenciada por radionovelas, fotonovelas e melodramas mambembes do Circo- Teatro Serelepe, não presta, mas talvez possa render algumas risadas. Anos mais tarde, foi a base para Luiz Arthur Nunes e eu escrevermos a peça teatral A maldição do Vale Negro. Não mudei absolutamente nada do original: a graça aqui, creio, está justamente no tosco e no tolo.”


CAPÍTULO 1

Adriana estava sentada em uma poltrona, folheando um livro sem muito interesse. Suas roupas eram modestas, mas não pobres, tinha longos cabelos negros que nunca prendia e seus olhos também eram negros, dando-lhe uma expressão triste que jamais se apagava, nem mesmo quando ela sorria. Subitamente, uma batida à porta. Adriana assustou-se, mas logo levantou correndo para abrir, não sem antes arrumar os cabelos com as delicadas mãos.
— Boa-noite, Adriana — disse o homem a quem a jovem atendeu.
— Oh, Fernando! — falou ela, com sua voz quente e vibrante. — Fernando, tenho tanta coisa para contar...
O homem entrou. Estava ricamente vestido, mas seu rosto era vulgar. Tinha a testa muito larga, contrastando com os olhos miúdos e vivos que examinavam a moça com avidez. Adriana fê-lo sentar e, tomando as mãos dele entre as suas, levou-as à boca, roçando-as suavemente com os lábios.
— Querido — ela disse comovida —, há mais uma estrela no céu, há mais um anjinho aos pés da Virgem Maria...
— Que significa isso, Adriana? — perguntou Fernando, com o largo sobrecenho franzido.  A moça, surpreendida com a reação, não conseguiu falar e fez um quase imperceptível aceno com a cabeça. Por fim conseguiu balbuciar timidamente algumas palavras.
— S-sim, Fernando... Agora poderemos nos casar e... então nós iremos viver no seu castelo, Fernando... no castelo de Saint-Marie... nós e nosso filhinho...
Fernando, furioso, deu-lhe um empurrão gritando:
— Idiota! Você pensava que eu, o senhor de Saint-Mame, iria casar-me com você? Com você, uma zinha qualquer? Mulheres iguais a você, Adriana, encontram-se aos montes em qualquer lugar, mulheres que com um gesto oferecem-se a qualquer homem!
Adriana estava em pé. Sua aparência tão doce transformara-se em uma máscara onde se estampavam simultaneamente o ódio, o desespero e o desprezo. Levantando a cabeça, ela olhou fixamente para Fernando e em voz rouca, entrecortada pelas lágrimas, gritou-lhe:
— E homens iguais a você, Fernando de SaintMarie, não se encontram todos os dias. Homens que em sua suja alma não têm um pingo de moral, uma gota de honra nem de dignidade. Homens que não pensam nas mulheres puras e honradas que sacrificam-lhes toda a sua pureza para que eles satisfaçam os seus desejos sexuais, desejos de bestas. E depois de saciados não hesitam em abandonar uma pessoa que sofreu todos os seus sofrimentos, deixando também o sangue de seu sangue, a carne de sua carne que germinou no ventre de quem o amou. Você, Fernando, estava num alto pedestal. Por você eu abandonei tudo, mas agora o pedestal caiu e o ídolo caiu ao chão esfacelando-se.
Cinicamente, o homem contemplava Adriana. Por fim levantou-se, furioso com as últimas palavras da jovem e, dando-lhe uma violenta bofetada, atirou- a ao chão.
— Prostituta! — gritou. — Prostituta é a palavra que serve para você, Adriana!
Em seguida tirou algumas notas da carteira e atirou-as no rosto de Adriana, lavado em sangue e lágrimas.
— Infeliz! — gritou a moça. — Hei de vingar-me, e minha vingança será terrível, Fernando de Saint-Marie. Hei de ving...
Com um gemido, Adriana perdeu os sentidos. Fernando apanhou o chapéu e o sobretudo e saiu assobiando.
Pouco depois, a moça voltou a si do desmaio e arrastando-se penosamente pelo tapete manchado de sangue conseguiu chegar a uma mesinha, sobre a qual estava uma imagem da Virgem com Jesus ao colo. Erguendo o belo rosto para a imagem, Adriana juntou as mãos pálidas e rogou:
— Virgem Santíssima, o que mais quero na vida é que meu filho nasça. Por favor, Senhora, deixe-o nascer... deixe-o nascer...
E proferindo essas palavras caiu novamente des maiada.


CAPÍTULO II

Ali, nas montanhosas escarpas dos Pirineus, erguia-se o imponente castelo Saint-Marie, nome que também designava a família possuidora do castelo. À frente do casarão havia uma alameda que, descendo as escarpas dos Pirineus, encontrava a estrada que levava até um pequeno povoado. Dos lados e atrás do castelo existiam terríveis precipícios e, alguns quilômetros depois, um regatozinho onde as lavadeiras trabalhavam.
Vamos encontrar Fernando de Saint-Marie, o futuro proprietário do castelo, subindo pela alameda que conduzia à morada. Neste instante ele batia à porta com a pesada e severa aldrava em forma de cabeça de leão.
Uma criadinha apressou-se a abrir. Fernando entregou-lhe o sobretudo, o chapéu, e entrou na imponente mansão. Logo à frente da porta havia uma escadaria que, mais acima, dividia-se em duas. O futuro senhor de Saint-Marie subiu essas escadas com passadas fortes, que retumbavam no silêncio do castelo. Tomou a escada da direita e subiu até um amplo living onde se encontravam cinco pessoas.
Uma delas era a Senhora Ilsa de Saint-Marie, mulher de sessenta anos, de fisionomia bondosa e acolhedora. A outra era Eleonora, parente longínqua da fami’lia e que há quatro anos vivia ali, desde que completara quinze anos. Era uma jovem magra, assustada, mas não era feia. Tinha cabelos louros presos num coque e dois olhos enormes e azuis. A outra pessoa na sala, além do avô de Fernando e do mordomo Jacques, era a governanta Amália, uma mulher orgulhosa e vaidosa e que, apesar de ter mais de quarenta anos, nunca se casara, por isso tornando-se amarga e triste. Foi ela quem criou Fernando desde que este nasceu.
Dona Ilsa de Saint-Marie virou-se para o filho com a fisionomia alegre. Com dificuldade levantou- se da poltrona para beijar Fernando:
— E então — perguntou —, como foi seu passeio? — Mas sem dar tempo ao moço de responder, continuou: — Não sei por que esses passeios noturnos, nunca gostei deles. Você sabe, meu filho, que não somos vistos com bons olhos na vila...
— Deixe o rapaz sossegado, Dona Ilsa! — exclamou Amália. — Ele já é um homem, sabe o que faz!
Fernando estava alheio a essas conversas. Lembrava das palavras de Adriana ao sair da casa dela.
Eleonora, noiva de Fernando, amava-o muito, mas ao mesmo tempo sentia certo medo dele. Agora estava triste, pois o rapaz não lhe dirigira um olhar sequer desde que chegara. Adiantou-se intimidada, tomou a mão da Senhora Ilsa e levou-a aos lábios.
— Até logo, titia — disse. — Vou para meus aposentos, se me permite.
A velha Senhora de Saint-Marie tinha um sorriso malicioso nos lábios quando perguntou:
— Já, Eleonora? Não vai conversar um pouco com seu noivo? Ou será que vocês estão brigados?
A tímida jovem murmurou um trêmulo não e saiu quase correndo da sala.
— E você, Amália — continuou Dona Ilsa —, já encontrou a moça que precisava para ajudá-la no serviço?
— Não — foi a seca resposta da governanta. — Mas mandei avisar no povoado.
Fernando avançou e, dando um beijo na enrugada face da mãe, disse:
— Vou seguir o exemplo de Eleonora, mãe. Também vou deitar-me. Estou muito cansado.
Fernando retirou-se. E Amália fez o mesmo, seguida pela Senhora Ilsa e pelo mordomo que empurrava a cadeira de rodas do Senhor de Saint-Marie.
O silêncio caiu sobre o castelo de Saint-Marie.


CAPÍTULO III

Em seus aposentos, Fernando tinha os pensamentos voltados para Adriana:
— “O que pensará ela fazer? Qual será a sua vingança? Ah, mas eu não deveria estar receando alguma coisa da parte de uma mulherzinha vulgar e inculta, apesar de muito bela... Mais bela que minha noiva Eleonora...”
Esse último pensamento de Fernando ocorreu-lhe sem que o quisesse. Mas, na verdade, não se podia comparar a beleza de Adriana à de Eleonora. Uma era ardente, sensual, um verdadeiro vulcão prestes a explodir; a outra, tímida, frágil e delicada. Duas mulheres totalmente opostas uma da outra.
— “E se ela contar à minha mãe que eu, o futuro Senhor de Saint-Marie, sou o pai de seu filho?”

Perto dali, Eleonora tinha seus pensamentos voltados para Fernando. Abraçada ao macio travesseiro, imaginava por que motivo o jovem não retribuía seu amor:
— “Será que ele ama outra, meu Deus? Mas quem, quem poderia ser? Fernando quase não sai do castelo, passa os dias trancado no escritório. E quando sai” — pensava ela com amargura — “...quando sai não se digna a lançar-me um olhar, um gesto, um nada. E eu... eu o amo tanto, tanto... Daria a minha vida para vê-lo feliz...” E enterrando a loura cabeça no travesseiro, ela começou a soluçar baixinho, deixando as lágrimas correrem livremente. Por fim, receando que a cruel Amália a ouvisse, silenciou e adormeceu.

Lá embaixo, no povoado, Adriana tinha pensamentos muito diferentes dos da doce Eleonora:
— “Fernando odeia-me... e eu também o odeio. Não sei como pude entregar minha virgindade a um homem mau que só tem pensamentos voltados para o dinheiro. Preciso vingar-me, preciso fazê-lo sofrer tudo o que estou sofrendo... Sei que Amália, a governanta do castelo, andou pela vila anunciando que necessitava de uma ajudante. Pois bem, eu me empregarei no castelo até que meu filho nasça e então me vingarei de você, Fernando de Saint-Marie. Você há de pagar bem caro o que me fez!” E Adriana cerrou com ódio os punhos. Quando os abriu, tinha as mãos crispadas e no rosto uma expressão de fúria. Foi com dificuldade que conseguiu acalmar-se para poder dormir.

Mas voltemos ao castelo de Saint-Marie, justamente no momento em que um grito horrendo feriu os ares. Passos ressoaram pelos corredores. Era Amália dirigindo-se ao quarto de Eleonora, de onde partira o grito. Entrou e deparou com a moça sentada na cama, com uma expressão de horror no rosto.
— Que aconteceu? — perguntou a governanta.
— Foram eles — respondeu Eleonora com uma expressão de loucura — ... foram os fantasmas... eu os vi... ali, na janela... vultos brancos movimentando-se no ar...
— Essa é a maldição que pesa sobre nós, os SaintMarie — disse a voz da Senhora Ilsa, que acabara de entrar.
Eleonora rompeu a chorar e, enquanto Dona lisa a consolava, Amália falou com desprezo:
— Maldição, fantasmas... Fantasmas não existem, minha cara Eleonora. Você sonhou. Ou então...
Notando a pausa feita pela governanta, a Senhora Ilsa procurou completar, perguntando friamente:
— ... ou então o quê, Amália?
— Ou então Eleonora está enlouquecendo — concluiu Amália, saindo do aposento.
Eleonora levantou a cabeça e disse quase gri tando:
— Eu sei que não sou louca! Eu os vi... Ali, ali... Eram brancos... sim, muito brancos... e dançavam...
Dona Ilsa encostou a mão na testa da jovem. Estava quente, sim, muito quente. Mas a bondosa senhora não se assustou, e ali permaneceu embalando a pobre moça até que ela dormisse e então, na ponta dos pés, apagou a luz e retirou-se para seus aposentos. E a noite cheia de mistérios e segredos envolveu o castelo até o romper de um novo dia.


CAPÍTULO IV

A manhã já chegou àquela região da França. O dia amanheceu tão bonito que parecia quase impossível existirem ódios naquela linda região. No povoado, as donas de casa já andavam pelas ruas carregando sacolas, todas cumprimentando-se alegremente. Longe da vila, na fonte, as lavadeiras trabalhavam enquanto cantarolavam canções regionais. Quase todos estavam contentes. Somente no imponente castelo dos Saint-Marie é que parecia não haver uma janela ou porta abertas que pudessem permitir a entrada da felicidade.
No castelo, todos já estavam em pé, à exceção do idoso Senhor Danilo de Saint-Marie, que era paraiftico e não se encontrava disposto a levantar-se.
No saguão da morada, a orgulhosa governanta Amália conversava com uma jovem totalmente vestida de preto. Era Adriana.
— Então? — perguntou a governanta. — Você sabe o que tem a fazer aqui?
— Não, senhora — respondeu Adriana. — Apenas sei que desejava uma ajudante, não sei o que tenho a fazer.
— Não é muita cousa. Apenas fiscalizar o trabalho das criadas e servir o café da Senhora lisa, do Senhor Danilo, de Eleonora e de Fernando.
— Adriana não se mostrou nervosa nem mesmo quando ouviu Amália dizer o nome de Fernando. Ela imaginava o que faria o rapaz quando a visse.
— E então? Aceita? Além de seu salário, terá casa e comida.
— Oh, sim, senhora. Permita que eu me retire para ir ao povoado buscar minhas roupas?
A governanta fez um gesto indiferente, e Adriana retirou-se. Amália não simpatizara com a moça, e não procurou esconder isso. Pouco depois a Senhora lisa entrou no recinto acompanhada de Eleonora. Seu rosto estava alegre e, sacudindo no ar um envelope, disse à governanta:
— Amália, imagine o que diz aqui! George acabou seus estudos e vem morar conosco, não é maravilhoso?
Amália não concordava, ela nunca gostara de George, o outro filho de Dona Ilsa. Sempre mostrara clara preferência por Fernando.
Eleonora ainda não conhecia George, por isso mostrava-se animada. Sua paiidez habitual quase a abandonara. Mas fingindo mostrar-se interessada, Amália indagou:
— E quando ele chega?
— Hoje mesmo, Amália — respondeu a Senhora Ilsa. — Após o meio-dia. Não esqueça de arrumar o quarto dele. A propósito, já conseguiu a ajudante?
— Sim. É jovem ainda e muito bonita, por isso creio que não goste de trabalhar.
A Senhora Ilsa ergueu uma sobrancelha, ela conhecia Amália há quase vinte anos e notou que esta não simpatizara com Adriana. Sabia que teria que suportar intrigas e mentiras da parte da governanta para que se zangasse com a moça.
Eleonora pensava em seu noivo. Sabia que ele estava trancado no escritório, como sempre, de onde só sairia para o almoço, mas mesmo assim perguntou, timidamente:
— E... Fernando?
— Ora — foi a resposta impertinente de Amália — está no escritório. Onde mais poderia estar, minha cara Eleonora?
A jovem corou, baixando os olhos, e a governanta deu um sorriso maldoso. Ela considerava Fernando quase como propriedade sua, e não admitia que lhe tomassem seu afeto. Ficou alguns instantes parada e depois, pedindo licença, saiu dali.
A Senhora Ilsa e Eleonora também se retiraram para o jardim e o saguão ficou vazio.
Em seu escritório, no meio de uma papelada, Fernando escrevia nervosamente. Ele procurava concentrar-se no trabalho sem conseguir, seu pensamento fugia para Adriana. Levantou-se e passeou de um lado para outro fumando, fumando incessantemente, depois chegou à janela e ficou a olhar para fora. Assim permaneceu algum tempo, até que um carro parou no jardim e prendeu-lhe a atenção. De dentro do carro desceu uma moça morena, vestida de preto.
Os olhos de Fernando não conseguiam acreditar no que viam, mas era verdade, a terrível verdade. Aquela moça é Adriana! Fernando sentiu-se cambalear e precisou sentar. Passou a mão pela testa e sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto.


CAPÍTULO V

Adriana caminhava rapidamente pelos longos corredores do castelo, nas mãos uma pequena valise onde estavam guardadas suas poucas roupas. Neste momento, ela passava justamente pelo escritório de Fernando quando a porta se abriu.
— Adriana — disse Fernando, agarrando a jovem pelo braço. — Adriana, o que é que você está fazendo aqui?
A moça assustou-se, mas recobrou a calma e fitou friamente aquele homem. Deu um safanão no braço e disse:
— Estou empregada aqui, Fernando, e aqui ficarei até o meu filho nascer.
Adriana deu uma entonação especial às três últimas palavras, e gozou com o desespero de Fernando.
— Mas você.., você não vai... — gaguejou ele. — Não, Fernando. Não vou contar nada à sua mãe. Por enquanto, não. E agora largue-me, tenho o que fazer.
E a moça, com um gesto de desprezo, retirou- se caminhando de cabeça erguida.
As horas passaram-se. No grande salão, todos, menos o Senhor Danilo de Saint-Marie, estavam reunidos para o almoço. Adriana servia a mesa. A Senhora Ilsa mostrava-se muito excitada, pois George poderia chegar a qualquer momento. Subitamente uma batida na porta fez a Senhora levantar-se.
— É George, eu sei! Meu coração diz que é ele! — Dona Ilsa fez questão de abrir ela mesma a porta. Ali estava parado umjovem moreno, alto, vestido com cuidado, e seus olhos inteligentes tinham um tom esverdeado. Dona Ilsa abriu a pesada porta e o rapaz atirou-se nos seus braços.
Depois ele cumprimentou Amália, Fernando, Eleonora e... Adriana. Nestas duas últimas, o seu olhar parou, ele não as conhecia. Eleonora estendeu-lhe a mão e disse:
— Eu sou Eleonora, George.
O jovem beijou-lhe a mão, mas seus olhos não se desviaram de Adriana.
— Quem é essa moça? — perguntou.
— Oh — Amália apontou Adriana —, é a minha nova ajudante. Começou a trabalhar hoje. George sorriu para Adriana, simpatizara com ela. A moça retribuiu-lhe o gesto, sorrindo timidamente.
E ficariam ali a fitar-se se Dona Ilsa não os interrompesse.
— Venha, George — disse ela —, você deve estar cansado. Vamos até o seu quarto.
Adriana ficou parada, seu coração batendo descompassadamente. Sentia algo que não podia definir, como uma vontade louca de correr, de olhar o céu, o sol, as flores. Mas a fria Amália interrompeu os seus pensamentos perguntando:
— Adriana, você não vai servir Fernando?
A moça estremeceu e pegou uma vasilha. Fernando notara como ela ficou impressionada com o seu irmão, e uma onda de ciúme, de ódio, de rancor invadiu-lhe o coração. Sim, ele não conseguia esconder seus sentimentos: Fernando amava Adriana.

A tarde passou sem novidades até a hora do jantar, quando todos voltaram a reunir-se em volta da mesa.
— E George? — perguntou Amália.
— George está muito cansado — respondeu a Senhora lisa. — Ele ficou em seus aposentos. Adriana vai levar-lhe o jantar.
Adriana estremeceu, mas pegou uma bandeja e, subindo as escadas, bateu à porta do quarto do rapaz.
— Entre — disse ele.
Adriana entrou. O rapaz estava deitado lendo um livro, mas, ao vê-la, passou a mão pelos cabelos e colocou o livro sobre a mesinha de cabeceira.
— Vim trazer-lhe a janta, senhor George.
A moça colocou a bandeja sobre a mesa. Ao fazer isso, seus olhos encontraram-se com os de George. Este, sentando-se na cama, perguntou:
— Por que está tremendo, Adriana?
— Por nada — disse ela nervosamente. — Sou uma tola.
— Sabe que é muito bonita?
Adriana corou, mas nada respondeu e, abrindo a porta, saiu do quarto. Seu coração voltara a florir: Adriana sentia que encontrara o seu verdadeiro amor
e estava feliz. Ela amava George como nunca tinha amado ninguém. Era um sentimento puro, calmo, belo, muito diferente da violenta paixão que sentira por Fernando.


CAPÍTULO VI

Amanheceu mais um dia na França. Lá no alto, no castelo dos Saint-Marie, a vida de intrigas, ciúmes e desconfianças continuava. Ainda não eram nove horas e todos continuavam em seus aposentos, à exceção da governanta Amália, que dava ordens na cozinha, e de Adriana. Adriana já levou o lanche a todos, menos a Eleonora e a George, e o de Fernando, Amália fez questão de levar.
Neste momento Adriana subiu para servir George. A bandeja tremia em suas mãos e o seu coração batia nervosamente. Ela contou lentamente os degraus até chegar lá em cima e bateu à porta, depois entrou sem esperar resposta.
— Bom-dia, senhor George.
— Bom-dia, Adriana. Sabe que esta noite sonhei com você? Ora, não precisa ficar vermelha assim...
Adriana baixou a cabeça e murmurou:
— Senhor George, eu... eu sou apenas uma criada, nada mais que isso.
George a olhou sorrindo, mas não se conteve e disse:
— Adriana, sabe que a amo? — A moça ergueu o rosto muito pálido e ficou a olhar o másculo rosto do rapaz. Mas eis que surgiu como um turbilhão e, sem que ela pudesse explicar como, seus lábios encontraram-se com os de George e um doce beijo os uniu. — Adriana, desde que a vi senti que minha vida ia mudar. Eu a amo muito... muito...
Enlevada, Adriana repetiu as últimas palavras do rapaz:
— Eu o amo muito... muito... — Mas subitamente lembrou-se que já pertencera a outro, e afastou-se bruscamente, saindo do quarto a correr. Chegando às escadas, começou a chorar, mas secou as lágrimas com as mãos e desceu.
Enquanto isso, na cozinha, uma mão segura um pequeno frasco e despeja um pó branco no café destinado à Eleonora.

A manhã passou tranqüilamente. No almoço, Adriana procurou evitar que seu olhar se encontrasse com o de George, mas ficou tão nervosa que derramou um prato de sopa, levando uma repreensão da dura Amália. Findo o almoço, a Senhora Ilsa propôs um passeio pelos campos, mas somente Eleonora e George animaram-se com a idéia. E os três convidaram Adriana para acompanhá-los.
Saíram a caminhar. Adriana acompanhava a Senhora Ilsa; mais à frente George caminhava com Eleonora, olhando de vez em quando, furtivamente, para trás.
— Adriana — disse a Senhora Ilsa, arquejando —, acho que não posso mais, vamos sentar um pouco?
A jovem sorriu e procurava ajudar Dona lisa quando tudo escureceu, e ela precisou segurar na mão da velha senhora para não cair.
— O que houve, Adriana? — perguntou Dona Ilsa. — Está se sentindo mal?
— Oh, não — respondeu a moça, passando a mão pela testa —, foi apenas uma tontura... Já passou...
Dona Ilsa notou a palidez da jovem e procurou dar à voz um tom normal quando disse:
— Minha filha, sou velha e experiente, não procure esconder nada de mim. Eu sei o que há. Você... você vai ter um filho, não é isso?
Adriana não respondeu, desejaria estar muito longe dali, desejaria não ter que contar sua amarga história à bondosa Senhora Ilsa. Pensando nisso, começou a chorar convulsivamente.
— Chore, minha filha, chore que isso só lhe fará bem. Mas não se preocupe, não a mandarei embora. O seu filho terá um lar.
A moça levantou os olhos cheios de gratidão e abraçou Dona Ilsa. Nesse momento, Fernando assomou à janela do castelo e ficou intrigado ao ver aquela inesperada cena. Vendo aquilo, George e Eleonora também voltaram-se, e o rapaz perguntou, trêmulo:
— O que houve com Adriana, mamãe?
— Houve que... que Adriana vai ser mãe...
— ... vai ser mãe?! —repetiram Eleonora e George
A Senhora lisa acenou com a cabeça e, abraçada a Adriana, voltou-se e começou a caminhar de volta ao castelo dos Saint-Marie.


CAPÍTULO VII

Mais uma noite cobriu a França e todo o Ocidente. Os cães e lobos começaram a entoar sua costumeira canção à lua que, naquele dia, nega-se a aparecer e com ela, também as estrelas. O céu estava sem nuvens, negro, totalmente negro, e a angústia parecia pairar sobre o mundo, principalmente na velha mansão da tradicional família dos Saint-Marie, onde um manto de desgraça envolvia tudo. Aos lados e atrás do castelo, os ameaçadores precipícios dos Pirineus aumentavam a tristeza do cenário.
A refeição notuma estava sendo servida. Ao redor da mesa agrupa-se toda a família, até mesmo o Senhor Danilo, que se sentia melhor. Amália, a fria governanta, também está à mesa, pois é quase uma Saint-Marie. Adriana servia os pratos, ajudada por uma criada macilenta que parecia estar sempre receando uma repreensão.
— Toda a famflia reunida, hein? — disse George, tentando alegrar o ambiente.
Amália teve vontade de dar uma de suas costumeiras respostas. Chegou a abrir a boca para falar, mas a Senhora Ilsa, como que prevendo o que ela diria, lançou-lhe um olhar e o silêncio se restabeleceu. A suave Eleonora olhava Fernando que, calado como sempre, não lhe prestava atenção. A jovem reprimiu  um soluço e levou o garfo aos lábios, mas uma garra de ferro pareceu comprimir-lhe a garganta. Ela soltou um gemido que se transformou num grito lancinante e depois tombou.
— Eleonora! — gritou Dona Ilsa, levantando-se.
— Eleonora, o que houve? — falou George, auxiliando ajovem a levantar-se. E voltando-se para Adriana, pediu: — Adriana, pegue um copo d’água, depressa, por favor!
Todos estavam nervosos e falavam ao mesmo tempo, apressadamente. Amalia esquivou-se e subiu as escadarias quase correndo. O terror e a alegria estampavam-se ao mesmo tempo em seu rosto perverso.
— Outra vez — gemeu Eleonora —, outra vez...
— Mas por Deus — gritou George borrifando-lhe as faces com água —, o que aconteceu?
— Confie em nós, minha filhinha — pediu a Senhora Ilsa. — Diga-nos o que aconteceu.
Até mesmo Fernando aproximou-se e tomou a mão da moça. Eleonora sorriu, dizendo depois:
— Foi só um mal-estar... Não se preocupem, já estou bem...
O velho Senhor Danilo de Saint-Marie aproximou-se em sua cadeira de rodas e falou tremulamente:
— Minha filha, ouça um conselho ditado por um homem velho e experiente. O que você tem sempre aconteceu com as noivas dos Saint-Marie, algumas chegaram a morrer antes de casar e...
Com lágrimas nos olhos azuis, Eleonora gritou:
— E... Continue, por favor, diga que estou enlou quecendo!
O velho sorriu mostrando as gengivas murchas e descoradas:
— Não, Eleonora, não é isso... É a maldição dos Saint-Marie! Por causa dela estamos todos refugiados neste castelo, reduzidos a este mísero grupo. Nós... que já dominamos quase toda a França!
— Então é isso — gritou Eleonora. — É a maldição de que nunca quiseram falar!
Dona Ilsa procurava acalmar a jovem acariciando-lhe as louras mechas do cabelo. Fernando aproximou-se do velho senhor e perguntou:
— E o que o senhor aconselha?
O velho deu um sorriso enigmático e disse:
— Casar-se, casar-se o quanto antes... Antes que sua noiva seja levada pela morte!
E afastou-se rindo alto. Enquanto isso, Amália regressou fingindo um nervosismo que estava longe de sentir. A Senhora Ilsa ergueu-se, tinha o ar solene, o ar que adotava nos momentos importantes.
— Pois o casamento deve realizar-se o quanto antes — disse. — No máximo, dentro de um mês.
Fernando fez um gesto de pouco caso, que feriu Eleonora, feliz com a realização de seu sonho. A um canto, Adriana sentia-se mais do que nunca como uma simples criada, como uma mulher ultrajada que procura vingar-se. Sem querer, olhou ternamente para George e, para sua surpresa, o rapaz lhe devolveu o olhar. Olhar esse que não passou despercebido. Amália o notou. A família ainda ficou reunida mais algum tempo a conversar, a fazer planos para o casamento de Fernando e Eleonora. Mas logo recolheram-se, e todas as luzes se apagaram.

CAPÍTULO VIII

Adriana caminhava pelos longos corredores do castelo. A escuridão a assustava, e só ao lembrar-se que tem que subir ao último andar, onde fica seu quarto, tem um arrepio de medo. Agora ela passava pelo quarto da Senhora Ilsa Saint-Marie, logo além ficavam os aposentos de George. Mas de repente parou, e foi com espanto na voz que perguntou:
— George! O que está fazendo aqui?
— Adriana — disse o rapaz num sussurro —, não posso mais... Eu a amo muito, temos que nos casar!
Espantadíssima, Adriana só conseguiu gaguejar:
— E-eu t-também... amo você, George... mas você sabe que... q-que eu...
— Sim, eu sei que você vai ter um filho, Adriana. Mas creia, eu a amo muito e isso não faz diferença. Sei que você ainda conserva a pureza da alma e se cometeu alguma... alguma loucura.., foi num momento de embriaguez, num momento de paixão.
O rapaz falava ansiosamente, olhando bem dentro dos negros e tristes olhos da infeliz Adriana. Esta sussurrou:
— George, nosso amor é puro, sim, mas nunca seria feliz. Sempre haverá aquela sombra em meu passado... e você não sabe quem é o pai de meu filho...
— Adriana, não me torture... Nós poderemos esquecer isso, e o pai de seu filho, o canalha que a maculou, não se interporá jamais entre nós. Quando a criança nascer nós já estaremos casados!
Adriana pensou na felicidade de que poderia usufruir. O futuro estava em suas mãos, e por um instante ela quase esqueceu por que estava ali.
— Não, George, eu o amo também... mas tenho outro objetivo em mente. Só poderemos casar quando eu já o tiver alcançado, e isso será muito breve, creia-me.
George espantou-se com o tom em que eram ditas aquelas palavras, e mais estupefato ficou quando Adriana saiu a correr, sem lhe dar explicações. Mas ele conseguiu alcançá-la.
— Adriana, não sei que objetivo será esse. Mas quero que me prometa o seguinte: dentro de um mês, no casamento de meu irmão, anunciaremos o nosso noivado, está bem?
A jovem concordou com a cabeça. Sim, que melhor vingança poderia desejar? O despeito e o ciúme de Fernando ao saber que ela, Adriana, seria uma Saint-Marie, e que o seu filho poderia ser o senhor de tudo um dia. Mas não apenas por isso casaria com George, não: ela também o amava. Com um beijo rápido, despediu-se de George e foi para seu quarto. O resto da noite passou com o horror de costume. Isto é, os fantasmas apareceram novamente para Eleonora, que outra vez gritou, pedindo socorro. Todos acudiram a seus gritos, e a Senhora Ilsa, olhando pelo janelão, nada conseguiu ver, embora desejasse estar enganada. A Senhora lisa julgava, assim como todos os outros, que a pobre moça estava mesmo ficando louca.

E as horas, os dias, as semanas passaram rapidamente. Agora faltam apenas dois dias para o enlace de Eleonora e Fernando, e também para o noivado de George e Adriana. Cerca de vinte empregados movimentavam-se pelo castelo arrumando, limpando, enfeitando. Apesar dos protestos de Amália, a Senhora lisa fazia questão de que fosse realizada uma festa de arromba.
Passou-se mais um dia. À noite, Eleonora teve novamente suas visões, e no dia seguinte, à hora do almoço, recusou o alimento. A Senhora lIsa, Adriana e George mostravam-se preocupados com a jovem, que definhava a olhos vistos.
Mas o tempo é inexorável, e o sol descambou mais uma vez.


CAPÍTULO IX

Finalmente chegou o esperado dia. Desde cedo Adriana estava em pé, e não só ela, Amália, George, a Senhora Ilsa, Fernando e até o Senhor Danilo de Saint-Marie fizeram questão de madrugar. Eieonora, por insistência de Dona Ilsa, permanecia em seus aposentos.
Deitada em seu leito, Eleonora pensava: — “Afinal chegou o dia, o grande dia de meu casamento. Eu devia estar feliz, mas não sei por que não estou. Sinto algo... algo que me diz que Fernando não é como eu penso... Oh, mas como sou tola, pensando sempre em coisas tristes.” E tentou mudar seus pensamentos, mas não o conseguiu. Permaneceu então deitada até que uma batida à porta a sobressaltasse. Era Adriana, com uma cestinha de onde retirou uma escova e um pente.
— Bom-dia, Eleonora, vim prepará-la para a ce rimônia.
Eleonora olhou para o vestido de noiva sobre uma poltrona. Era lindo, sim, lindíssimo e muito antigo: fora usado pela primeira Saint-Marie e seria usado pela última, rezava a tradição da família. A moça tentou levantar-se, mas estava muito fraca e quase não conseguia sair da cama. Adriana ajudou a moça a vestir-se e começou a passar-lhe o pente pelos louros cabelos, enquanto conversava alegremente. De súbito, Eleonora perguntou-lhe:
— Adriana, por que você está sempre vestida de preto? Morreu alguém de sua família?
Adriana teve um sobressalto, e foi com a voz repassada de tristeza que respondeu:
— Não, minha amiga, não morreu ninguém de minha família, pois já não a tenho. O que não existe mais é... um ídolo ou um homem que do mais alto degrau passou para o mais baixo... e acabou esfacelando-se e misturando com a poeira do chão...
Eleonora não entendeu mas, percebendo que o assunto entristecia Adriana, calou-se.

As horas passaram. A Senhora Ilsa veio bater à porta do quarto de Eleonora.
— Eleonora, minha filha, apresse-se! Só estamos esperando por você.
Adriana abriu a porta e a noiva saiu do recinto, belíssima, parecendo um anjo caído há pouco do céu. A Senhora lisa extasiou-se com a beleza da jovem e George, que passava por ali, soltou um assobio de entusiasmo.
— Você está lindíssima, prima! E você, Adriana, não vai se arrumar também?
A moça fez um aceno com a cabeça e saiu em direção a seu quarto. Dona lisa e George acompanharam a frágil Eleonora até a capela dos Saint-Marie, onde já estavam os convidados. A aparição da noiva fez um murmúrio de admiração erguer-se no ar. George estava impaciente e, quando viu Adriana entrar, puxou-a para o altar e disse:
— Senhores, em breve outro casamento realizar-se-á aqui. Tenho o prazer de comunicar-vos que estou noivo da senhorita Adriana Legrange!
Um murmúrio ergueu-se novamente. Todos estavam espantados com George de Saint-Marie casar-se com uma pobretona, além de tudo no estado em que se encontrava. Mas Dona Ilsa mostrou-se feliz, e não se cansava de beijar e abraçar a noiva. Todos da família aprovavam o casamento, apenas Fernando parecia descontente e Amália mordia os lábios de despeito.
A cerimônia começou. Transcorreu tudo normalmente e, depois de realizado o casamento, todos dirigiram-se para o castelo, onde um lauto almoço será servido aos convidados. Adriana já não era mais uma criada, mas a noiva de George. Todos pareciam tranqüilos e felizes, mas eis que um horrendo grito interrompeu a tagarelice das mulheres.
— Vejam! — gritou um convidado, apontando um vulto branco que despencava no precipício.
Uma mão invisível pareceu tapar a boca de todos. Um silêncio mortal envolveu o castelo de SaintMarie. O vulto branco era Eleonora.
— Eleonora! — gritou a Senhora lisa. — Eleonora, minha filha querida!
E fez menção de jogar-se também no precipício. Fernando conseguiu segurá-la a tempo. Entre lágrimas, George balbuciou:
— Ela era um anjo, e os anjos não pertencem à Terra.


CAPÍTULO X

Após o frustrado casamento de Fernando, uma profunda mudança ocorreu em Saint-Marie. A Senhora lisa tcomou-se uma mulher triste e caiada, a maior parte do dia rezando na pequena capela ou no túmulo de Eieonora. Amália tcomou-se ainda mais fria e insensível, parecendo intimamente muito satisfeita. Adriana agora já não era apenas uma criada, não mais servia à mesa ou tirava o pó dos móveis, e ocupava seu tempo a fazer roupas para o filho. George continuava a ser aquele rapagão alegre, mas sua alegria às vezes parecia forçada. Fernando não mudou: a morte de Eleonora não o comoveu absolutamente. Mas tomemos uma noite da mansão e vejamos o que acontece. Adriana não conseguia dormir, revirando-se na cama. Subitamente olhou para a janela e viu vultos brancos esvoaçando. “Fantasmas”, pensou ela, e de sua garganta saiu um grito aterrorizado.
Quase imediatamente surgiram a Senhora lisa, Amália e George.
— Ali... — disse ela, trêmula — ...ali na janela... os fantasmas... — E rompeu num choro convulsivo.
— É a maldição — disse soturnamente Amália. Ela está noiva de um Saint-Marie e...
Dona Ilsa interrompeu a governanta para consolar Adriana.
— Não chore, filhinha — disse ternamente —, isso não é bom no seu estado, não se preocupe.
George também consolava Adriana:
— Querida, acalme-se, pense em nosso filho.
A moça ficou satisfeita ao ouvir o nosso, e acalmou-se, adormecendo novamente.

Como Amália estava sozinha para atender toda a mansão, uma nova criada substituiu Adriana. No seu primeiro dia, levou o café da manhã para a moça.
— Bom-dia — disse Adriana —, vejo que é nova aqui. Como se chama?
— Lili, madama — respondeu a figurinha magra e irrequieta. — Mas se quiser pode me chamar de Noeli, que é meu verdadeiro nome, eu porém prefiro...
— Sei, sei — respondeu Adriana, rindo da maneira truncada da mocinha falar. — Dê-me o café, Lili.
A empregadinha, sempre rindo muito, perguntou:
— Eo seu nome, madama? Não é a Dona Driana?
— Adriana — corrigiu a moça —, mas dê-me logo o café e deixemos de tagarelar.
— Sim senhora, olha, eu trouxe até um pão com mantêga pra madama tão bonita.
—Manteiga, Lili, manteiga.
Adriana tomou seu café, depois entregou a bandeja a Liii, que saiu do quarto muito espevitada. O dia estava lindo. A Senhora lisa levantou-se muito cedo e foi fazer sua visita matinal ao túmulo de Eleonora. Adriana saiu a passeio com George, só voltando ao meio-dia. Ao sentar-se à mesa, Amália fitou-a com olhos estranhos. Subitamente a moça soltou um grito e caiu ao chão desfalecida.
— Adriana! — gritou George desesperado. — Oh, não! Está acontecendo com ela o mesmo que com Eleonora!
— Minha querida — disse Dona lisa maternalmente
—, tome este copo d’água e logo ficará boa.
Fernando retirou-se bruscamente da saia. Amália disse, vitoriosa:
— É a maldição! Dela ninguém escapa, ninguém!
O Senhor Danilo de Saint-Marie aconselhou:
— Vocês têm que casar-se logo, antes que o precipício chame Adriana, como fez com Eleonora.
O velho senhor era muito respeitado, sua sugestão era a única aconselhável. Ficou decidido então que a cerimônia seria logo realizada, um casamento simples, quase em segredo.

No dia seguinte George foi ao povoado arrumar os papéis necessários para o casamento. Adriana ficou no castelo, tricotando e conversando com Liii, a criadinha, com quem fez grande amizade. Amália caminhava sozinha pelos corredores. Suas passadas retumbavam no silêncio, ela parecia preocupada com alguma cousa.
Ao anoitecer, George voltou ao castelo, cansado, mas feliz. Dentro de uma semana será realizado o casamento.

CAPÍTULO XI

Passaram-se cinco dias de tensão em Saint-Marie. Adriana tinha visões e desmaios cada vez mais freqüentes. Certa noite ouviu-se um grito louco no castelo, mas não vinha dos aposentos de Adriana, e sim do quarto de Amália.
Todos correram para lá. A peça estava cheia de fumaça negra, uma língua de fogo lambia o teto.
— Tia Amália! — gritou Fernando penetrando no aposento. — Tia Amália, onde está a senhora?
Nesse momento ouviu-se um estrondo na parte norte da mansão, aquela parte do castelo acabara de ruir.
Subitamente uma horrenda gargalhada assustou a todos. Amália, correndo pelos corredores com um toco de vela na mão, parecia totalmente louca. Com uma expressão de fúria, ela gritou:
— Eleonora morreu! E Adriana morrerá também! Os Saint-Marie morrerão todos! Eu os matarei um a um! Sempre fui tratada como uma criada, mas me vingarei! Hei de matar a todos, todos!
George agarrou a infame governanta e puxou-a para fora da mansão. Adriana, a Senhora lisa e Danilo de Saint-Marie, com sua cadeira de rodas empurrada pelo mordomo Jacques, seguiram atrás. Lili já se encontrava lá fora.
— Jacques — pediu George —, segure Amáiia enquanto vou buscar Fernando.
E entrou novamente no castelo envolto em nuvens de fumaça. Adriana gritou por ele, mas o corajoso rapaz não a atendeu.
— George — chorava Dona Ilsa —, George, não... Perdi minha querida Eleonora, Fernando e agora George. Não, meu Deus, é demais para mim.
— Acalme-se, filha — disse o idoso Senhor Danilo. — George voltará e trará Fernando também.
Dona Ilsa chorava desconsoladamente. Adriana não sabia o que fazer. Amália acalmou-se, e lágrimas caíam-lhe dos olhos enquanto pronunciava palavras desconexas.
— Veneno, veneno... meu amor... Eleonora... Fernando... eu me vingarei... o pó... sim, o pó está lá dentro... deixem-me buscar o pó... os lençóis... os fantasmas... a maldição... ninguém escapa da maldição...
E sacudia a cabeça desgrenhada violentamente.
Nesse momento um formidável estrondo retumbou no silêncio da noite. O castelo de Saint-Marie já não existia. E... George?
— George! — gritou Adriana. — George, querido, onde está você?
Um grito respondeu ao chamado de Adriana: era George, curvado sobre o corpo inanimado de Fernando. Adriana correu para lá. Ao ver a moça Fernando sussurrou:
— Adriana... você... você me perdoa?
Adriana limpou com o lenço o sangue que escorria do peito de Fernando, acenando com a cabeça. “Sim”, murmurou, mas o homem já nada escutava. Fernando de Saint-Marie estava morto.
A Senhora lIsa chorava mansamente enquanto acariciava os cabelos do rapaz.
— O que é que você perdoa, Adriana?
— Fernando era o pai de meu filho — murmurou Adriana. E ante os olhos estupefatos dos outros a moça desfiou a sua longa e triste história. Dona Ilsa a abraçou, dizendo entre lágrimas:
— Você é uma Saint-Marie, Adriana. — E virando para Amália, perguntou friamente: — E você, o que tem a dizer?
Amália não oferecia mais resistência, e respondeu:
— Eu amava Fernando e odiava todos os SaintMarie. Por isso suspendia lençóis à janela do quarto de Eleonora, e depois de Adriana. Uma negra velha da aldeia deu-me um pó branco que eu colocava nos alimentos de Eleonora e de Adriana, daí provinham os desmaios e tonturas.
— Terminou? — perguntou George, espantado com a revelação.
— Sim, terminei.
Lili comentou:
— Puxa, que mulher ruim!
Jacques, o mordomo, levou Amália ao povoado para deixá-la na delegacia.
— Perdi Eleonora — lamentava-se Dona Ilsa —, e agora perdi também Fernando...
— Não chore, mamãe — disse George. — A senhora ganhou uma filha.
Dona Ilsa levantou os olhos cheios de lágrimas para Adriana, procurando sorrir.
— Está feliz? — perguntou George a Adriana.
— Oh, George! — soluçou a moça. — Como posso estar feliz? Não mereço o seu amor. O meu coração estava cheio de ódio por Fernando, eu só pensava em vingança. Você me perdoa?
Como resposta, o rapaz abraçou-a e deu-lhe um leve beijo nos lábios. Talvez agora eles possam ser felizes, a pérfida Amália não fará mal a mais ninguém.
A aurora já põe os dedos cor-de-rosa no puro azul do firmamento. Contra o horizonte destaca-se a outrora mansão dos Saint-Marie, agora transformada em ruínas. Mais atrás vê-se a silhueta de dois jovens abraçados, parecendo uma promessa de esperança e fé no futuro.


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| Por Caio Fernando Abreu | 17.9.13 | 19:52.

À memória de Carmen da Silva

“Numa tarde de novembro de 1966 eu estava em meu quarto no IPA, internato em Porto Alegre, lendo Graciliano Ramos, quando vieram trazer um envelope grande chegado de São Paulo. Era um exemplar do revista Claudia com este conto publicado e uma carta de Carmen da Silva. Há quase um ano, eu enviara o texto a ela pedindo apreciação, e não recebera resposta. A carta explicava: Carmen queria me proporcionar a surpresa da publicação, a primeira. Foi naquele momento que me tornei definitivamente escritor. Exceto por algumas palavras e parágrafos, não mudei mais nado nesta história. Tentar “melhorá- la”seria atraiçoar a inocência dos 18 anos que eu tive.”
  
Bonita mesmo ela nunca foi, sobre isso todos sempre estiveram de acordo. Ainda mais agora, já quarentona, os cabelos muito finos e lisos eternamente presos num coque sem graça, os olhos parados numa expressão estranha, misto de ironia e tristeza. Mas não se pode negar que tinha algo diferente — alguma coisa assim que transcendia o corpo e ficava pairando ao seu redor como... como uma névoa vaga de manhã de outono. (Ia dizer auréola, mas essa palavra  lembra santa e isso eu garanto que ela nunca foi.) O fato é que ela possuía uma graça especial, talvez o modo como se debruçava à janela, ou mesmo o jeito oblíquo de sorrir apertando os lábios, como se temesse revelar no sorriso todo o seu mundo interior.
Teresa era seu nome. Nome comum que não lembra nada nem ninguém — a não ser as duas santas, a Teresinha de Jesus na música infantil e a Teresa Cristina imperatriz, com as quais aliás nem um pouco ela se parecia. Pois Teresa vinha de uma família muito numerosa. Onze irmãs. Todas com T de inicial no nome também. Teresa, sorte dela, foi das mais velhas, pois a décima segunda, esgotado o reservatório de nomes, foi batizada como Telêmaca. Mesmo essa conseguiu casar. Todas as outras conseguiram, menos Teresa. Foram-se indo aos poucos todos aqueles tês, como a água numa banheira vai sumindo, sumindo, de repente a gente depara com a banheira vazia e pergunta: “Ué, cadê a água?” Foi isso que aconteceu com Teresa. Madrinha, testemunha ou aia de todos os casamentos. Sempre sorridente, feliz com a felicidade das outras, escondendo uma ponta, só uma pontinha, de inveja boa. Os parentes já se olhando de esguelha, trocando sorrisos maliciosos, fazendo apostas ferinas: “Será que esta encalha?” As irmãs casando e Teresa sobrando, o corpo fanando, a carteira e as luvas puindo de tanto casamento. E um misto de amargura e expectativa se acumulando num fundo de alma.
“Minha vez também há de chegar”, pensava, comparando-se às dez irmãs. E tirava, honestamente, um saldo a seu favor: era mais inteligente, mais desembaraçada, mais elegante. Mas ia sobrando. E a esperança — a esperança ameaçando tomar-se real no primo Gonçalo, de olhos verdes, verdes, tocador exímio de violão, seresteiro incorrigível, partido visado pelas moçoilas românticas e temido pelos papais, aquela esperança apequenando mais e mais no coração de Teresa. Foi-se de vez no nono casamento: Tanira e Gonçalo confirmam. Teresa, madrinha mais uma vez. Sorriso desta vez como pintado no rosto onde os olhos mostraram, pela primeira vez, aquele misto de ironia e tristeza. Depois a festa, os doces, as danças, os pares rodopiando, o violão, os olhos — meu Deus, tão doidamente verdes! — de Gonçalo postos nos olhos sem graça da irmã. Teresa enfiada num canto, falando de pontos de crochê para dona Anaurelina, buço cerrado, seios fartos, mãe de Gonçalo rodopiando na valsa e olhos (ainda, Deus meu!) postos nos olhos de Tanira.
À noite, sozinha na cama, amargura, culpa, choro envergonhado, desejos inconfessáveis, pensamento em Gonçalo. Olhos nos olhos de Tanira, tão desvairadamente verdes. Os noivos na cama longe dali decerto abraçados, colados, fundidos. Olhos nos olhos mesmo no escuro. A cor dos olhos dele devia brilhar no escuro, como os dos gatos, dos tigres. Um gato no cio miou lá fora, e ela revirando-se, mãos buscando água na mesinha de cabeceira, sono pesado, pesadelo verde, cheio de olhos e gatos, valsas e tigres. Na manhã seguinte, a vergonha de si mesma, das coisas que pensara durante a noite — seria doida? O medo de retratar-se em cada gesto, em cada palavra, a fazia cerrar-se áspera à menor tentativa de aproximação dela e das irmãs restantes. E à noite, outra vez o corpo ardia no desejo impossível do corpo do pequeno. Os dias atordoados, as noites longas, suores, frustração. O tempo, remédio pra tudo, diziam, passando. As irmãs casando sem parar. Teresa ressecando. Os pais morrendo. Quando eles morreram, o pai menos de ano depois da mãe, ela não chorou. Já havia esgotado, pensava, sua capacidade de sofrer. Mas pensando na relativamente boa situação financeira em que ficara após a morte deles, a única solteira e desamparada, não podia deixar de lembrá-los com gratidão.

Teresa de luto fechado, sozinha em casa com o gato. Às segundas, visita de Têmis; às terças, visita de Tania; às quartas, de Teima; às quintas, de Tatiana; às sextas, de Tflia, que as outras moravam em outras cidades. Os sábados livres para igreja, cemitério. Domingos: banho, vestido bem passado, talco, perfume, coque, janela. Olhos gulosos nos homens que passavam. Olhos úmidos ao ouvir as crianças de mãos da- das cantando “Se eu roubei, se eu roubei teu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também”. Novelas no rádio e leituras para matar o tempo. No começo, desde almanaques de farmácia até livros de colégio, depois dedicou-se somente às histórias infantis. Domingo à tarde, debruçada na moldura verde da janela, em segredo punha nos vizinhos apelidos tirados dos livros. Branca de Neve era a moça branca e anêmica, diziam que tuberculosa, filha de seu Libório açougueiro que, por sua vez, era o gigante de João e o Pé de Feijão. As irmãs Rosa Branca e Rosa Vermelha, as duas metidas filhas do médico, e a Moura Torta. a portuguesa da venda, coitada, tão boazinha apesar do narigão e da corcunda. E foi assim que apareceu o príncipe Sapo.
Teresa adorava aquela história, já lera mais de dez vezes. “Ai como sou besta e sem fundamento”, pensava, tamanha mulher lendo e ainda por cima gostando dessas bobagens para crianças.” Pensava vagamente em procurar um médico para curar a mania, ouvira falar de psicólogos, médicos de cabeça, que curam coisas assim. Mas não fazia nada. Fugia a toda hora para aquele mundo feito de casas de doce, castelos, fadas, maçãs mágicas. Sonhava com o príncipe Sapo. Negava o real, enojava-se da lembrança de Gonçalo, braços cabeludos, peito cabeludo, suado, cheiro de homem, cigarro e cerveja, banhas incipientes com o casamento. Tinha nojo, sim. Comparava-o ao príncipe Sapo — louro, delicado, perfumado, olhos azuis — não verdes, verdes não! —, tocando piano com aquelas mãos tão alvas. Gonçalo tocava violão. Teresa odiava violão, amava violão. Odiava Gonçalo, amava Gonçalo. De manhã, no espelho, chamava-se em voz alta de besta, besta, besta. Estava ficando louca e velha e feia e quase quarentona e ressecada e cínica, até cínica. meu Deus. Chorava. Recompunha Gonçalo na memória traço por traço, depois apagava tudo com as imagens dos príncipes das histórias infantis.

Resolveu então encontrar o príncipe Sapo. Durante três domingos procurou-o inutilmente em todos os homens que passaram sob a janela. No quarto, debruçada na janela verde, cabelos presos no coque, talco, banho recente, corpo apaziguado — pois no quarto domingo achou. Não, não era louro nem delicado, nem tinha os olhos azuis. Resumindo: em nada se parecia à gravura do livro. Em compensação, lembrava tanto um sapo que ela não pôde deixar de olhá-lo atenta.
E lá vinha ele descendo a rua, baixinho, cheio de tiques, os olhos saltados saltando para os lados. Um terno surrado dançando no corpo franzino, uma pasta embaixo do braço, caminhando como se fosse aos saltos. Um sapo perfeito.
Ela riu alto e ele quase parou, espantado com aquele riso tão claro na garganta da solteirona da janela verde. Depois se foi, baixinho, nervoso. Teresa ficou olhando até que desaparecesse na curva da rua. À noite sonhou com ele. Não mais com a figura do livro, mas com ele mesmo, o sapo. Sonhou coisas que a fizeram corar no dia seguinte, olhando-se ao espelho e chamando-se baixinho de cínica, cínica, cínica.
Indagou pela vizinhança, até descobrir. Era professor de piano, pobre, solteiro, morava na pensão da esquina, O nome: Francisco, todos chamavam de Chico. Nada lembrava príncipe, nem sapo. Professor de piano, isso gostava. Resolveu comprar um piano. Comprou. Tomásia, Tônia, Tatiana, demais tês e respectivos maridos censuraram-na por jogar fora assim a herança dos pais, coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo, e ela já querendo gastar dinheiro, assanhada, ingrata, e num piano, logo num piano, coisa preta, grande e quase sem utilidade, a não ser tocar, coisa que aliás ela não sabia, profanadora do luto, arriscando-se a levar castigo divino, nem parecia que respeitava a memória deles, nem parecia que era católica apostólica romana.
— Chega! — berrou Teresa, replicando que já tinha quase quarenta anos, o dinheiro era seu, fazia o que bem entendesse dele, não seria por isso que deixaria de amar os pais, coitados, tão bons, fal há tão pouco tempo. — E além disso — continuou nética —, vocês têm seus maridos e filhos para trair, e eu, que que eu tenho? Me digam, o que tenho nesta casa vazia?
Escândalo. As irmãs saindo uma a uma, das, chamando-a de cínica, cínica, cínica. Relações
cortadas.

Mas o piano veio. Grande, rabudo, pretíssimo. Dedos cansados acariciando teclas à toa. Sons difusos, dissonantes, espalhando-se pela casa grande e deserta, entrando no coração amargurado de Teresa, ferindo-o de leve. Leve como o toque de seus dedos nas teclas frias, frias como as lágrimas pingando no assoalho escuro, escuro como a madeira envernizada do piano na qual ela passava a mão como se fosse uma pele de gente.
Não perdeu tempo. Em seguida, as aulas. O príncipe Sapo batendo tímido na porta. Olhos baixos, pés esfregados no capacho. E escalas, escalas e mais escalas. Notas, sustenidos, bemóis, cachorro vai, dó-ré-mi, claves, mi-dó-ré, pauta, compasso, cachorro vem, ré-mi-dó. Teresa deslumbrada, como se tivesse em suas mãos a chave do cofre onde o mundo esconde seus tesouros. Quase esqueceu-se do verdadeiro motivo pelo qual comprara o piano, tanto gostava de música. A solidão nem mais pesava. Havia agora um amanhã, um ontem, um hoje. Havia o piano, as lições, os exercícios. Esqueceu o gato, a janela no domingo, os livros infantis, as novelas. Havia o piano. E havia também o príncipe, o Sapo.
No começo tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezível. Mas ao cair de uma tarde, Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois com compreensão, depois com simpatia, depois... Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele trêmula, nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se como que por acaso, as quatro mãos. Uma semana mais tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha, quase sem ilusões.
O piano cantava cada vez com mais alegria, os rumores na rua cresciam, todo mundo comentando a pouca vergonha. Mas Teresa feliz, feliz, feliz. Uma página inteira feliz. Um livro inteiro feliz. Um mundo inteiro, Teresa feliz.

Até que Gonçalo, sempre o cunhado mais decidido, veio falar com ela. Tranqüila, Teresa ouviu...
— Olha, não temos nada com a sua vida, nem eu nem sua irmã, mas achamos que devemos... — pigarreou, tossiu, meio engasgado com as palavras difíceis ensaiadas antes — ... devemos zelar pelo bom nome da famflia, tão representativa na sociedade local. Afinal de contas, seus pais...
— . . .coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo — interrompeu Teresa distraída.
Gonçalo parou, surpreso. Ela sorriu com o canto da boca. ironia, ele desconfiou. Mas prosseguiu:
— Pois é, isso. Eles não haviam de gostar.
— Mas gostar de quê?
— Desses rumores.
— Quais rumores, Gonçalo?
Ele começou a perder a paciência. Os olhos antigamente tão incrivelmente verdes! ela pensou com pena — ganharam um brilho frio e mau e opaco de vidro sujo, fundo de garrafa.
 — Ora, Teresa, não se faça de inocente. Você já não é mais nenhuma criança, já tem trinta e cinco anos e...
— Trinta e oito.
— Pois é, isso. Não é mais idade de andar namoricando com esse tal de professor que não tem nem onde cair morto, e deve estar de olho mesmo é no seu dinheiro, esse...
— Príncipe Sapo.
— Hein?
— Príncipe Sapo, ora.
Gonçalo olhou melhor para ela. E adoçou a voz como quem fala com uma criança — ou uma louca —, os olhos retomando por segundos aquele verde bom de antigamente.
— Que príncipe, Teresa?
— Sapo, já disse. Que coisa, parece surdo. Aquele que pegou a bola de ouro da princesa e pediu para ir com ela, comerem juntos, dormiremjuntos, você sabe.
Gonçalo desviou os olhos e deslizou-os pela sala, o piano enorme e o retrato de Chico Francisco príncipe Sapo sobre ele. Teresa acompanhou seus olhos pensando — “Gonçalo, eu amei você. Seus olhos verdes, seu violão. Amei a serenata que você nunca me fez”. Depois foi falando devagar, sílaba por sílaba, como se o que dissesse fosse algo muito frágil:
 — Eu vou me casar com o Chico — “Francisco príncipe Sapo”, completou mentalmente. E mentiu, deixando-se embalar pelas próprias palavras: — Já mandei até ver o vestido, branco, comprido, com uma cauda deste tamanho. Vou casar de noiva, dos pés à cabeça.
Gonçalo suspirou. Já ouvira falar de muitos casos assim, essas moças passadonas, solitárias. Podia ficar ainda mais grave com o passar do tempo. Não tinha cura. Pediu licença, levantou e se foi, levando para sempre seu olhar já nem tão verde e a serenata frustrada.


Pausa de uma lição. Sobre o guardanapo branco do piano, chá e bolinhos. Zumbido de mosca voando, entontecida pelo calor. Teresa com os dedos que há pouco ensaiaram no teclado, sem erro, a primeira parte de Pour Élise descansados no regaço. Feliz, feliz, feliz, casar.
— Chico — disse de repente —, nós vamos nos casar.
Silêncio. Teresa envolveu com olhar terno aquele homem pequenino demais, humilde demais — mas tão seu, o único que a vida lhe dera. A mosca zumbia mais, o calor aumentava, cinco da tarde de janeiro. Então ele olhou bem fundo nos olhos dela. Tinha uns olhos pardos, salientes, caídos, infinitamente tristes.
— Eu não posso, Teresa. Não posso casar com você. Nem com ninguém.
E foi explicando aos trancos, a voz ainda mais baixa, mais cansada.
— Foi no quartel, há muitos anos. Uma granada, você sabe, explosão, um acidente, estilhaços. Não sou homem inteiro. Só meio homem, entende, Teresa? Não me obrigue a falar nisso!
Teresa endureceu o rosto, imóvel na cadeira. Antes que ela falasse, o príncipe Sapo foi saindo exatamente como entrara: cabeça baixa, meio tropeçando no capacho. Na porta ainda parou e olhou para trás. E achou-a tão bonita ali sentada na sala clara, ao lado do piano, aquele olhar triste e irônico, os cabelos finos e lisos presos no eterno coque, as mãos cruzadas no regaço, tão bonita que não pôde deixar de sorrir. Foi esse sorriso que doeu em Teresa. Doeu pelo resto da vida.
Ah, pobre Teresa, irmã de mil outras teresas do mundo inteiro. Piano vendido num leilão. Domingo à tarde, cabelos num coque, banho recém-tomado lavando mágoas e suores. Teresa na janela verde. Teresa olhar irônico e triste. Teresa olhar guloso em todos os homens que passam. Teresa de olhos úmidos ouvindo as crianças a esganiçar Rua da Solidão. Fogueira no corpo ainda virgem de quase quarenta anos,
fogueira no fundo do pátio incendiando livros e sonhos, bruxas e príncipes. Vontade de gritar, gritar bem alto e bem forte, sozinha à beira do fogo. O vento bate e salva do fogo uma página colorida e sopra-a pela rua afora. Ah, outra vez essa vontade de gritar um grito alto e triste que dobre lá longe, junto com a folha colorida em chamas, na mesma esquina onde dobrou para sempre Francisco Chico príncipe Sapo última esperança.



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| Por Caio Fernando Abreu | 6.9.13 | 19:50.